Da crise hídrica (Jan/2015)


Seu Luís está fazendo musculação sem que quisesse. Todo dia busca galões de água que leva do centro até sua casa, porque lá tesouraram.

Dona Juraci ouvia dizer que um dia a água ia valer ouro, mas com toda sua experiência de vida, ela hoje suspeita que o ouro já esteja valendo água.

Elaine tem chuveiro e energia elétrica em casa mas toma banho de caneca todos os dias.

Numa reunião de condomínio desses pequenos, discutia-se a compra de mais três caixas d’água. O síndico havia cotado, ontem mesmo, num valor de R$ 3 mil cada, mas na mesma reunião alguns moradores checam o valor pela internet no mesmo lugar e agora está R$ 5 mil cada. A caixa, sem a água.

De ontem para hoje, o órgão responsável pela distribuição e tratamento de água juntamente ao governo declarou que está havendo corte de água à toda população.

Um ano atrás, as torneiras da casa de Dona Leonor nem mais choravam; secaram de tanto lacrimejar.

Seis meses atrás, o então (e atual) governador da cidade declarava na TV que não havia racionamento de água, e que as coisas estavam sob controle. Culpava a falta de chuva, é verdade, que poderia cooperar, mas crise hídrica? Isso não existe, nosso potencial é enorme, dos maiores do mundo. É reeleito governador no 1º turno. Afinal, é nisso que consiste governar: faça tudo em prol do seu dinheiro e de sua própria imagem, adore-a; empurre os problemas para os outros governos, culpe-os, culpe os outros – e não se importe em mentir para isso – culpe o povo, culpe Deus se for necessário, o destino, o acaso, a falta da chuva, mas jamais, jamais assuma que esteve errado, jamais diga que conduziu mal as suas escolhas, que não teve planejamento e nunca use a palavra “incompetente” junto da 1ª pessoa. Lembre sempre o povo de que você é perfeito e todos eles são cegos e loucos, todos que não enxerguem sua perfeição. Lembre-os de que tudo na cidade está portanto perfeito e que os problemas que cada cidadão enfrenta diariamente, materiais ou psicológicos, são ilusões.

José Maria se levantou, olhou a manhã com noite enquanto se espreguiçava e foi coar seu café. Encontrou filtro, cafeteira, bule, pó, mas não encontrou água. Antes ela se escondia mais tarde, às 13h mais ou menos, toda traiçoeira, enganadiça, deixando uns fiapos pelos canos como quem diz “eu fui mas eu volto”. Hoje ela foi embora mais cedo e sem deixar recado e seu José, brasileiro e sem café nem água, ficou preocupado.

Já Maria José, visto os problemas que passou a enfrentar, deu um jeito de reaproveitar água, que agora só descia pelo ralo depois de ter feito hora extra. Dona Maria enche balde com água que escorrega pela pia, com a água que escorregava pelo corpo, com a que lavou a roupa, fora as calhas pra aproveitar a água da chuva, e aí, considerado seu esforço, que fazia sem reclamar, sobrava água até pra regar planta. Dona Maria parou outro dia pra pensar como é que ela sem instrução nem diploma fazia tudo aquilo e os doutores do governo e das empresas não eram capazes de reaproveitar nada.

Pedro, um dia passando pelo centro da cidade, viu uns caras, que vestiam um uniforme colorido com um emblema do governo, molhando a calçada ao lado de um caminhão com a escrita “água de reuso – não potável”. Aí ele lembrou que direto via a calçada cagada e mijada por mendigo e por cachorro. Obviamente, pensou, a solução não era tirar aquelas pessoas da rua dignamente e educa-las, mas deixa-las cagar ao ar livre e depois molhar a calçada. Aliás, se Dona Maria José tivesse pensado em voz alta aquilo que pensou, o governador certamente teria se defendido, dizendo que eles reaproveitam água sim senhor, usada para limpar as ruas da cidade, por exemplo.

Cidinha aos 12 anos de idade ainda não entende por que o professor fala na escola que água não tem cheiro. Do lado da casa dela é um fedô desgraçado e ela tem certeza que vem do rio que passa ali.

Lucas subiu da classe D para a C, por uma ajuda do governo mais uma canetada. Mas ainda não tem saneamento básico, muito menos casa própria, e menos ainda perspectiva. Aí ele mora mesmo é no sonho de ser aviador. Só que toda hora ele acorda.