aberto o novo caderno
diante a folha em neutro
tento talhar dores presentes

mas essa estaca enferrujada
esse medo de sangrar
são eles próprios dor

me perfuro pra me vasculhar
e encontro um susto
um outro, mais outro
susto
não encontro
o meu poder de me assustar



(sem título)

(...) Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes (...) – O Lobo da Estepe



quando eu fosse bem pequeno
tamanho metade de um arroz
acompanhava essas formigas que visitam minha cozinha
até achar essa toca esbelta
onde as operárias organizam revolução

aí marchava com elas
segurando acima do corpo não um grão de açúcar
ou uma folha de orégano
mas um pedaço bem grande de espelho
que não se sabe onde
como
quando
quebrou




Terra que promete

São Paulo...
ah, como te aturo!
como te esbarro, São Paulo
durante as minhas vagas andanças
quanto do teu solo duro
são dores de tuas crianças!

finanças, cartéis, negócios no escuro
tudo é pronto para suplantar ganância
tudo é ágil conforme o teu horário
mas nada passa: fica o ciclo
o encaixe das peças de tua máquina
e a gasolina é o sangue do teu próprio operário

paulista... que gente mais engraçada!
cospe no prato que come
maltrata o alasão que a carrega
copia o pior do ocidente
tem medo do que é diferente
e inventa que a gente é diferenciada...

pois venham, venham todos pra São Paulo!
mas tragam paciência, fé e algum santo pra curar sandice
que o brasileiro é povo hospedeiro
mas aqui se recebe é de mão fechada
com punhos, granadas, ódios e tiros
tudo depende, é claro, do remetente
pois venham haitianos, venham nordestinos
venham os suburbanos, os africanos, os latinos
imploro pra que cuidemos desta gente doente!
esqueçam de terra prometida
São Paulo é a terra que promete e não dá nada
o solo roxo acabou
o que ficou foi uma casca gelada

Drummond, você me perdoe
“não cantes tua cidade”, eu sei
mas é urgente
São Paulo precisa ser denunciada
perdoa, Mário
é o progresso
que a tuas águas todas soverteu
perdoa vô!
que o rio que o senhor sempre sonhô, fudeu!
São Paulo é o inferno!
são milhões de labaredas às tardes
são milhõe$ em cada maldade
que ninguém vê, ninguém viu
(é que o síndico desse gigante condomínio
aprendeu com o síndico do Brasil)

essa cidade é treta...
tem uma cidade branca
dentro da cidade preta!
os rico é cego, surdo e burro
e os pobre só andando de muleta
terra da hipocrisia inata!
da luta incessante pra manter o crime atuante
terra que troca morte por prata
e difere usuário de traficante
pelo tipo de nó da gravata

São Paulo, como te detesto!
o que fazes pelos teus cachorros?
os únicos que cuidam de seus mendigos
lema prepotente, só vai te levar pra lama...
não conduzo nem sou conduzido –
que todos fossemos irmãos: convivo!


(sem título)

hoje, novamente faltaram os gritos
cambaleantes o vício dos sapatos
agora o mundo estava em guerra
ouço o eco dos estrondos
passeiam livres nesta manhã de segunda-feira

minha querida metrópole
quanto cuspe acumulado na boca de teus povos
quanto sangue nos dentes
coagularam os lábios dessas faces
escondidas atrás de uniformes

a marcha avança em segurança
nos rostos o desejo insosso
de retomar a ênfase das coisas
todos vestem cocares
e lanças perfuradas no peito



DESTINO PARAÍSO

foi num segundo brusco feito freio
alguém ousou pausar a monotonia
no breu da dúvida,
não havia susto
ausente a angústia
somente pressa de chegar a onde

quanto o preço de tua morte, vulgo cidadão...
uns quinze minutos de atraso
sequer manchete em jornal
e eram poucos no vagão sem fones para ouvir
o anúncio lúcido:

“trem parado devido a usuário na via
estamos aguardando a higienização do trecho”